terça-feira, 18 de junho de 2013

Implodir...

Para quem não conhece a realidade do ensino em Portugal, é a realidade que
os políticos e a maioria dos portugueses desconhece ou faz que não conhece.

 Carta aberta ao Professor Nuno Crato João A. Moreira, em 14.06.13

Caro Professor Nuno Crato, Acredite que é com im ...enso desgosto que lhe
escrevo esta carta aberta. Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar
com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos
manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de
aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos
professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por
parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições
nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da
escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos,
pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança
que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual
governo. Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos
seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar
os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros,
incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e
entristece-me. Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e
durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu
tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu
lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e
dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso
país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os
trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço
de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na
expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho
que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho
que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no
rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor
Professor ...não sei o que teria sido de mim! Depois, casei-me com uma
professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o
meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas
canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me
habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as
aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem
milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num
português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos;
dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para
estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para
pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com
dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de
preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo,
estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso
que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo
para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar
da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de
objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de
autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem
descrevia nas suas análises. Durante estes muitos anos a viver com
professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas
trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar
os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha
família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os
milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas
passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares
de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares
de passeios que não demos. Não sei se esses milhares e milhares de horas
perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se
discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de
trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca
mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do
tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu
computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha
sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus
fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões
ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão
a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que
deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da
repartição. Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é
que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados,
continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e
milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu
descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e
não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas
em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua
profissão. Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de
profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre
educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer
aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir:
implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.

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